Perde-lo Tudo (Parte 7 e Final)

Habiam passado 3 semanas desde que Caniche recuperou a liberdade, e de pouco me ia acostumbrando à sua ausência. A posta dentro do penal havia sido tomada por Matu, quem se encarregava de levar os assuntos da banda por dentro enquanto Caniche desfrutava de sua merecida vida em liberdade (a meu juízo merecida, vocês provavelmente discordariam, especialmente pelo que vou contar mais adiante). Nesse tempo Caniche nem nos escrevia. Só o fazia com Matu, de vez em quando. Matu não nos revelava o conteúdo das conversas, mas nos dizia que Caniche estava bem, mandava cumprimentos e estava desfrutando muito do reencontro com sua família, passando tempo com eles. Até levando-os a tomar helado. Depois daquela noite que eu contei na cela, em que conversamos longamente com Caniche e Matu, nos contou o que pensava fazer e entre todos fomos polindo os detalhes do como, do tema não se falou mais. Não fez falta uma ordem de Caniche, sabíamos tacitamente que não se discutiam temas operativos em voz alta ao pé, estivesse ou não estivesse ele. Nunca. Lembro que foi um domingo de julho. Fazia um frio verdadeiramente de cagarse aquele dia. Era o domingo após um longo feriado de quatro dias que o governo havia decretado, o que para os presos não significava muito mas para os profissionais como Caniche gostavam já que a gente solia aproveitar, ir-se a outros lugares e permitir-lhes trabalhar um pouco mais tranquilos. Estava tomando um mate na cela com um dos caras, cagando de frio os dois, sentados em nossos catres e tapados com nossas mantas quando veio alguém do Serviço Penitenciário que conhecíamos, com quem tínhamos boa onda e às vezes Caniche lhe tirava alguns mangos para que olhasse ou deixasse de olhar algo. Nos saudou amigavelmente e me entregou um sobre papel madera, com acolchado de bolhas por dentro. O sobre, naturalmente, estava aberto. Na prisão se você não está muito bem arregimentado com o SPF, eles abrem absolutamente tudo e sempre tiram algo de você. Eu fixei-me no envelope e retirei o conteúdo. Só havia um telefone, um Samsung da linha baixa, junto com um papel escrito à mão. No papel, apenas havia um número de celular e então dizia 'PARA VOS SOLO. 19 HORAS', e estava assinado com o símbolo que Caniche costumava usar para identificar as coisas como oficiais e como ordens.

Era a cruz de Cristo, rodeada por um simples círculo. Nada mais. Caniche me havia dito há muito tempo que significava 'Deus dentro de tudo'.

Coloquei o celular no bolso e esperei ansiosamente a hora, que parecia não passar mais. Às 19 horas, pedi aos outros caras que por favor me deixassem um tempo sozinho na cela, que Caniche havia pedido, liguei o celular e marquei o número. Atendi uma voz que não reconheci. Disse ola mas apenas disse Não, pára, liga por vídeo. E me cortou. Coloquei o número como contato de WhatsApp e mandei videollamada. Um pouco mais tarde, sorri ao ver o rosto de Caniche, a quem tanto extraía. A verdade é que estava segurando o telefone como um asno, a imagem se movia muito e o via muito de baixo. Lançou uma risada quando me viu.

O que fazes Hacker!, disse-me.

Deu-me uma felicidade enorme voltar a vê-lo, Cani! O que fazes como vai?.

Como vais, querido? Como vai tudo?, perguntou-me.

Aqui vai, bem, sei eu, respondi, Eu, bólo, senta-te que me estás mareando..., ri.

A ver, pára..., disse e procurou um lugar para se estabilizar. Sentou-se e pude ver que estava dentro de algum lugar. Parecia a sala de uma casa muito humilde, com paredes de tijolo vazio e pouca luz, A ver ahí....

Assenti. Começamos a conversar um pouco e começou a me dizer que havia saído tudo bem. Tive sentimentos contraditórios. Não sabia os detalhes, mas se a ideia geral que havíamos planejado. Por um lado, me reconfortou que as coisas tenham saído bem e que, acima de tudo, não lhe tenha acontecido nada a Caniche, mas por outro...

Escute-me, disse finalmente, pondo-se um pouco sério, Vou te mostrar algo. Vou te dizer... a mostrar um toque e nada mais, eh? Um toque e nada mais. Não me peça mais. Assim que preste atenção. Ah, e tenho você no parlante assim que não diga nada. Ni mu.”, disse ele enquanto se levantou e começou a se deslocar pela vivência. Abriu a porta de um quartozinho, girou o telefone para me mostrar e ali eu vi, enquanto estabilizava o celular e enfocava.

Sentadas em uma cama para uma pessoa estavam Sara e Micaela, as duas grudadas uma ao lado da outra. As duas estavam com os olhos bem vendados, uma grossa fita isoladora sobre suas bocas e as mãos por detrás de sua espalda, como maniatadas apesar de não se ver. Sara com seu ventre de grávida, sem atinar a mover-se nada, e Micaela grudada à mãe do lado oposto. Não se moviam muito, às vezes giravam um pouco a cabeça como querendo escutar algo. Não se as viam feridas, para nada, parecia que não lhes haviam feito nada e estavam vestidas normalmente. A Armando não se via por qualquer lado. No quartozinho havia três tipos, um que eu conhecia que era da banda, sentado junto a uma mesa, bebendo algo de um copo e com um ferro importante sobre a mesa. Um dos outros dois que não conhecía estava olhando algo no seu celular, meio distraído, enquanto o outro olhava como Cão-filmeava com o telefone.

Confesso que ao ver isso devia ter sentido algo, mas a verdade é que não senti nada. Ainda é hoje que não sei se estive bem ou mal em não sentir. O tempo na prisão já me havia endurecido tanto e provocado tantos calos no alma que havia coisas que já nem registrava nem julgava. Fora do bem e do mal.

Cão-mantém o celular ali, mostrando-me Sara e Micaela por alguns momentos mais em silêncio e então saiu da piecita onde estavam, voltando para algum outro lado pela vivência. Vi que abriu uma porta de metal e saiu como a uma espécie de pátio que havia, meio coberto. Parecia cheio de coisas várias, como jogadas ou desechadas e muito material de construção. desparramado ou juntado em grandes bolsas. Sentou-se numa cadeira que não consegui ver e continuamos a falar.

Já pode falar, disse-me.

Como fizeram para entrar, afinal?, perguntei-lhe.

Com as suas chaves, boludo, riu-se forte, Quando nos largaram com o Chile fiz o boludo e dei ao chapéu o número das suas para que me desse. Nem se fixou o gil. Estava em outra. As minhas ficaram aqui, assim que quando te larguem tragas-as.

Assenti e sorri.

Caniche era muito rápido. Perguntei-lhe como havia sido tudo e ele contou-me, algo acima sem demasiado luxo de detalhes.

Diz que quando saíram após um par de dias de estar com a sua família, os puseram a dois caras da banda, turnando-se ao redor do que era o meu edifício, por um par de dias, relojeando os movimentos e a rotina. Com essa informação armaron o plano bastante rápido.

O Viernes que era feriado, Armando saiu com elas para ir à casa de Tortuguitas, então o departamento ficou vazio e à noite, com as minhas chaves, entraram tranquilamente dois caras para revisar o departamento, os corredores do edifício, o garagem, que se podia ver e não, também as vias de escape.

Um desceu e forçou a porta do reservado do encargado, revolveu um pouco e encontrou uma cópia da chave que ativava o garagem do edifício, guardando-a. Depois subiu ao departamento e ajudou o outro a preencher algumas malas, com toda a roupa de Sara e Micaela, a maioria das coisas de banho delas e algumas outras coisas do departamento que puderam manotear. Depois de um tempo, chegou um carro, um desceu para abrir-lhe o garagem desde dentro, carregaram o que haviam manoteado, carregaram-no no carro e se foram.

Para o Sábado pela manhã, tinham a chave do garagem e a chave magnética da entrada ao edifício já clonadas, por dúvidas, junto com uma cópia da chave do departamento. Deixaram um deles de guarda-avião fora todo o dia, também por dúvidas, e não passou nada. O mesmo Sábado muito tarde à noite quando ninguém... veía, entraram uma camioneta e um carro no garage, deixando-os lá prontos para o outro dia. Quando chegou o Domingo e Armando, Sara e Micaela voltaram a isso às 20, entraram no apartamento tranquilos, normal, sem se esperar nada, mas já havia cinco da banda esperando por eles dentro.

Os encaixonaram os três, um par reduziu Sara e Mica lá mesmo no living, as atou e amordacou, enquanto os outros três se jogaram sobre Armando, cagando-o um pouco a trompadas e culatazos até que a pouca resistência que Caniche disse que pôde brindar, se evaporou. Também o amordacou e entre os três o sacaram do apartamento, levando-o para o porão do edifício. Carregaram algumas coisas mais da casa em dois bolsos e valises, já objetos de valor maior, esperaram um pouco até que Sara e Micaela se acalmaram e também as levaram abaixo, carregando-as na camioneta que estava esperando pacientemente no garage. As carregaram, saíram do edifício tranquilamente e se perderam na noite.

Caniche disse-me que os dois que ficaram com Armando no porão o ataram a uma cadeira e continuaram cagando-o a trompadas, patadas e culatazos, mas essa vez mais tupido. Dizendo-lhe todo o tempo o que iam fazer com ele depois e como iam fazer cagar.

Quebrou-se como uma menina!, se ria Caniche ao me contar, O negro é deles que se fazem bem os porongas com as mulheres, viste, mas sempre há um mais poronga. Sempre há um peixe mais gordo. Ninguém tem os bolas grandes quando se o enfierram.

Eu me sorri, O que lhe fizeram?

Nada. O fajaram um bom tempo, um par de horas. Deram-lhe para que tivesse o filho da puta esse., respondeu Caniche, Me disseram os dudes que não sabia como chorava e como pedia por favor... que pelotudo!, eu me rei baixinho e ele continuou, Um dos dudes que estava lá com o ... que bom, a verdade é meio loquito, mas buen dude. Meio pervertido. Aparece que se cansou um pouco de bater nele e fez chupar-lhe a cock um tempo. A vos te parece…, he made a face like the mental image of what he hadn't witnessed didn't please him at all. Well, then they loaded it onto another car and took it away. Where?, I asked. Caniche shook his head, It doesn't matter where. Come on... It doesn't matter, Hacker. It's better if you don't know. That one doesn't do anything else., the way he said that last part made me think that what happened to Armando, if it wasn't already happening, was going to be something permanent soon. After a short silence in which Caniche answered something on another cell phone, he told me, Ah, I'm taking some things away. Everything, there are things of yours around here. To help with the costs, you know? For the dudes, mostly. And it's not coming or going to me. I made a gesture with my hand, Nothing that matters to me, Cani., I said, then continued with a smile, Putting his chest out all he worked for shared with his people..., I reminded him of the lyrics from Niño Jefe. Caniche burst out laughing and answered, That's right, dad. Well... we're taking all the cuties' clothes, and all the bathroom nonsense and that. Documents, cash, everything. I nodded in agreement, It'll look like they took a beating. And if we're lucky, the black guy also took one with them. Stay calm, it's going well. Then... how does Sara stay?, I asked. Caniche smiled and changed the subject, Man is a creature trapped between good and evil, Hacker, he told me. Caniche? A Zoroastrianist? I burst out laughing inside, Better not ask, dear he said to me. But I insisted. He took a long time to take something from someone else to drink. Look at your wife..., he started but I interrupted him. It's not my wife, Cani., I said sharply. He looked at me and nodded, You're right. Well... I'll leave the veteran here. Let her clean, cook, entertain the dudes from time to time. They haven't done anything to her yet, you see, because I'm still here. But as soon as we start working... eles andam por aqui... bom, seguro que vão começar a atender os que estão aqui.” “Onde é ‘aqui’?”, perguntei. “Não importa”, disse ele, “Vai se acostumar rápido. E se não se acostumar, vão fazer com que se acostume.” “Cuidado que Sara é muito rápida e muito viva. Não deixe que fique falando contigo e te enrede...”, avisei. “Sim, bem, também vão fazer com que ela se acostume a fechar o bico, imaginei.” “E o bebê?”, perguntei, “Parece que está por nascer…” “Nah, uma das senhoras aqui revisou quando a trouxeram e disse que falta um par de meses. Então há tempo. Quando nascer, vou levar eu mesmo”, disse ele. “Eh?”, perguntei com algo de apreensão. “Sim…”, respondeu após uma pausa, “minha esposa já está um pouco grande, sabes? É como eu. Já não pode ter mais bebês, mas sempre me disse que queria outro. A verdade é que estive dentro por um tempo e ela merece essa alegria. Sei que vai cuidar e amar muito, como se fosse dela. É uma cutie doce e merece, após todas as que eu fiz passar, pobre...”, riu suavemente, “Pôstia, amigo, vai estar bem criado. Te prometo. Vamos estar um pouco apertados em casa, mas sempre se pode fazer um lugarzinho.” Eu me encogeri de ombros, “Não sei para que você me diz isso assim, se não é meu.” “Não, sim, já sei, mas bem. Te digo apenas.” “E Micaela?”, perguntei. Caniche me despediu assim mesmo, com naturalidade de alguém que esteve nesse ambiente toda a vida. Não o vi dudar muito, então eu sabia que já havia pensado antes. “A menina vou lhe dar ao meu sócio, Benitez. Te lembras? O que trabalha no norte”, disse com frialdade. Claro que me lembrava de Benitez. Era um dos vários sócios que Caniche tinha espalhados por aqui. Operava no norte, como disse Caniche, em Formosa, Misiones e Chaco. Várias vezes trabalharam juntos, quando Caniche precisava mover algum carro roubado ou qualquer coisa para o Paraguai. o Brasil, Benitez facilitava e ficava com uma partezinha. Sempre trabalhavam assim juntos quando saía alguma coisa e se tinham bastante confiança. Durante muitos anos tiveram um arranjo com televisores grandes que Caniche roubava, Benitez os passava para o Paraguai e se os voltavam a vender aos giles daqui de Capital que voavam para Assunção comprar mais baratos, achando que eram uns cracks. O círculo da vida.

Mas Benitez também estava em coisas muito mais jodidas. Andava muito metido no narcotráfico, roubo e prostituição, é claro que amparado e arreglado com a polícia e os governos provinciais, pois lá não se pode trabalhar de outra maneira. Gerenciava uma partezinha do tráfico pela Triple Frontera e era dono de vários tugúrios de má morte e aguardaderos por essas províncias. Estou envolvido em um par de coisas que, através dos anos, estou seguro que teriam visto nas notícias, embora ele sempre tentasse manter perfil baixo e fazer-se o mais invisível possível. Era tão vivo como Caniche.

Eu me fiquei muito gelado, olhando para ele quando disse sobre Micaela. Ele falou primeiro.

Não te enojes, Hacker. É assim.

Como é isso?

É assim, meu velho, continuou, A mim me ficou uma dívida importante com Benitez de coisas que faziam uns anos atrás, que ele tem boa onda e tudo, mas eu precisava saldá-la. Já falei com ele. Vou vender a menina por 20 lucas verdes e estarei recontra saldado.

Para, Cani..., comecei, mas ele me interrompeu.

A vai a pôr a trabalhar, seguro. Ou revendê-la, não sei, mas seguro se a ficará. Recontra cubro a dívida com a garota.

Cani, escute-me..., disse-lhe, mas ele continuou.

Sabes como vai recolher o louco? Com essa menina? Nada a ver com o material que têm ali. Pff.

, disse enquanto tomava algo do seu copo, Sabes o que é quando chega o fim de semana e os pardos descem da tala e da colheita? Os poucos pesos que lhes dão queimam e o único que querem fazer é se beber e se acasalar. made a pause where I couldn't say anything, unable to prevent the images of what he was saying from bursting into my head. He kept going, not even realizing what he was saying, 'And those who are in the mountain, who work seasonally and never leave? Do you know what it's like when they finally let them go and they come down? I won't even tell you. They're animals, Hacker. Beasts. Some of them can't even talk, I swear. She'll be a star... They'll turn her into a factory of dudes...', he laughed but I interrupted him strongly.

'But shut up, Cani, you slut mother!', almost shouted at him.

He looked at me a bit surprised and composed himself, 'Uh... you're right. Sorry, I got carried away.'

'Don't let them do it, think about it...', I said trying to make him see reason.

Cani shrugged slightly, 'They'll make her do it because they'll have to. If she resists it will be worse.', he only said and kept a bit of silence.

I stayed thinking with him, also in silence. He was right. All the time in prison had already given me enough maturity to realize that he was right immediately. Micaela would be taken care of and maintained as well as possible because it suited them for her to be well. I thought immediately about what Caniche didn't tell me, leaving it to our mutual understanding. That if Micaela rebelled or tried to escape, they would beat her hard. And if that wasn't enough, the thugs and the scum would surely pick on her with some of the crap they trafficked (or all), to leave her well subdued and well addicted.

I started arguing with Caniche. I begged him, implored him not to do it. I gave him a thousand options... to take care of her until I got out, for him to keep her directly, I swore that somehow he would pay off the debt he had with Benitez when I got out, working for him or not. But there was no use. Finally, already exasperated, he spoke to me in a very serious tone.

'Marquitos, cut it...', he only called me by my name when I was telling myself off alguma merda, ou o pensava que era assim, 'Te disse que já está. Não des mais voltas. Esquece e deixa-me partir os ovos. Entendo você, amigo. Juro que entendo você, mas já está.' 'Mas pará...', eu continuei, mas me interrompeu. 'Mas pará, nada. Te disse que já está. Entenda. Já é um fato, já arregle, não há volta atrás.', disse ele enquanto eu o olhava em silêncio, 'Entendo que é uma merda toda a coisa que você passou, não se creia que não sei, mas assim cai a bola. Ponto. Você vai esquecer. Vai esquecer da menina. Vai esquecer onde ela está. Tudo. A garota morreu, Marcos. Para você, para o que lhe concerne, a garota morreu. Não existe. Ponto. Toma assim.' Eu vi ele frotar um pouco os olhos e continuou, 'Você precisa entender... espero que com o tempo você entenda, eu acredito que sim porque você é um cara legal. Mas você precisa entender que a garota morreu no primeiro dia que esteve com o filho da puta esse. A que você queria deixar de existir ali, e apareceu essa outra que continuou. Era outra pessoa, Marcos. A que você queria não está mais, está essa outra, que não é a sua. E desde aquele dia nunca quis ser.' Eu o olhei em silêncio e continuou, 'O que dizia São Agostinho? Que a paciência é a companheira da sabedoria. Dê tempo, menino. Dê tempo e você vai ver que é assim.' Em alguns segundos de silêncio pensei, enquanto Caniche me olhava. Ele me olhava e tomava algo do seu copo, contemplando-me em silêncio. Nesses segundos, senti novamente a superfície de couro na qual pareceu ter se tornado minha alma, em lugar do terciopelo suave que sempre tive, graças a todo o tempo que levei na cadeia. Asenti em silêncio, enquanto Caniche fez o mesmo. Quando alguém faz um pacto com o diabo, sabidamente ou sem saber, alguém se acha que pode ganhar. Alguns outros se acham que podem perder. Mas a verdade é muito mais terrível e, se me apressar, até maravilhosa. A verdade é que quando se faz um pacto com o diabo se ganha e se perde ao mesmo tempo, e isso é algo que apenas se entende, apenas se entiende de verdade, uma vez que já se pôs a assinatura no pacto. Não antes.

Sem rancor, Marquitos, disse-me.
Eu lhe respondi secamente após um momento, ... apenas negócios.
Eu amo muito você, amigo, finalmente disse Caniche, Cuidado, eh? Já vamos nos ver novamente em breve.

Assenti, Também eu., e vi como ele cortou a ligação.

Um par de meses mais tarde, um dia vieram buscar-me dois do SPF na cela e me levaram até outra dependência da prisão. Fizeram-me entrar em uma sala que parecia uma sala de espera, onde havia outros dois policiais e um escritório. Sentados atrás do escritório, uma garota jovem e linda, ao lado de outro homem mais velho, usando terno. Fizeram-me sentar à frente deles do outro lado do escritório e começaram a falar, enquanto os canas se mantiveram perto e de guarda. Diziam que eram da promotoria pública e estavam investigando a possível desapareção de Sara e Micaela. Também a de Armando, mas que isso estava sendo levado por outra gente. Perguntaram-me se eu sabia algo, devido à minha história como ex-namorado de Sara e o motivo pelo qual estava preso.

Disse-lhes que não. Que não sabia nada. Que eu estava preso sem contato com ninguém deles e que iria saber. A garota anotava e o homem continuava perguntando. Pediu-me para entregar meu celular a um dos policiais e lhe dei um telefone fantasma que carregava, sem nada incriminatório, apenas besteiras e coisas da prisão em que certamente não estariam interessados. O outro celular, que eu usava sério, estava bem guardado na cela. O homem pareceu estar satisfeito que eu estava cooperando.

Diga-me, você conhece Darío Adrían Peña?, perguntou o homem.
Fiz como se pensasse um segundo, Darío... ah, Caniche disse isso?. Ele assentiu com a cabeça, Sim, é claro. Era meu companheiro de cela. Todos o conhecem. Mas já foi solto há muito tempo.

Se sim, você manteve contato com ele após que recuperou sua liberdade?

Sacudi a cabeça, No. She left and we don't speak anymore. Some of the other guys I had more confidence in know. The girl wrote something down and suddenly asked me, So, Marcos, you don't have any information about Sara's whereabouts or disappearance... I interrupted her, No, miss, look... I don't know anything, I'm just finding out now from what you're telling me. I was here and a lot of time has passed since I last saw her. She wrote something down again and I kept talking, They haven't moved, have they? Or gone off with the new girlfriend somewhere? With Armando Espinoza?, she asked. I nodded, ... it's one of the strong hypotheses we're considering. You know, Marcos, you can get a reduced sentence if you know something and cooperate with us, no?, said the guy, Whether it's information about your ex-girlfriend or Darío Peña. Let's see, your cooperation will fall under the regime that can be considered for reducing your sentence, there won't be any problem. I put on my best fake smile and said, Fine. Very fine. That's what I'm doing, right? Cooperating. I already told you. The girl wrote more things down, they asked me a couple of silly questions about things that had nothing to do with this, things from prison, and the SPF took me back to my cell again. Finally, I never got a reduced sentence. It ended up being nothing. And luckily, it never occurred to me to try to find out how the topic of possible disappearance was going, since that would have raised suspicions. Finally, time passed and I was able to get out on parole. It cost me to adjust. Sometimes I'd hang out with Caniche and some other guys from the gang, who helped me find a place to stay and start rebuilding my life. Then I moved in with one of my old workmates, whom I got along well with, and stayed there for a while. Through contacts I still had from work, clients, I started doing freelance programming jobs for some of them and was able to save up some money dólares y junto con algo más de dólares que me prestó Caniche e empréstimos de outros amigos, juntei o suficiente para ir-me do país e arrancar novamente em outro lado, que foi minha ideia desde que saí da prisão. Sim, quando saí da prisão e comecei a me estabelecer novamente, mais de uma vez pensei em procurar Micaela. Mas Caniche não iria ajudar em nada, e não saberia outra maneira. Além disso, como faria? Havia passado o que parecia tanto tempo e quantas coisas haviam mudado. Ir-me-ia ao norte? Para quê? Para visitar buraco após buraco procurando-a? A prisão me curtiu, como eu disse, mas reconheço que não tanto para isso. E se a encontrasse, então o que? Se fosse um milagre ou casualidade absoluta que a encontrasse em algum lugar desses, o que? Ir-me-ia pelejar com 20? Ia resgatá-la ao tiroteio, como nas películas? E além disso, o mais triste, com quem me encontraría? Com quem? Decidi simplesmente ir-me. Ir-me-lo mais longe que pudesse. Desde há alguns meses que estou vivendo em outro país, não importa qual. Consegui um lugar para viver que compartilho com uma garota, também imigrante, com a qual à medida que passaram os meses de convivência fomos pegando onda e agora é minha namora. Ela me ama e eu a ela. Nós nos damos muito bem. Ela é designer gráfica freelance enquanto eu trabalho em preto em uma casa de comida, como encarregado do local, ao mesmo tempo que continuo fazendo trabalhos de programação por conta própria. Tudo ajuda. Escrevi tudo isso porque sentia a necessidade de contá-lo a alguém, e à minha namora não posso contar, e nunca vou fazer. Nem penso em Armando, nem me interessa. E para ser honestos, às vezes nas minhas noites solitárias me pongo a pensar em Sara, mas estou-me dando conta de que com o tempo, cada vez me lembro menos da sua cara. Me resulta cada vez mais borrosa, como uma imagem que se afasta cada momento mais. Um dia eu bem saberei que vai desaparecer por completo. A cara de Micaela, no entanto, em Essas noites solitárias atormenta-me. E sei que essa nunca vou esquecê-la. Por aqui essa é minha condenação perpétua em tudo isso, mais além dos anos que passei na prisão.

Quando comecei a contar-lhes esta história disse que era uma história de baixeza. E creio haver demonstrado. Contei as baixezas de Armando. As de Sara. As de Micaela, e até mesmo as do Caniche. O que nunca lhes disse até agora é que também estavam minhas, e são essas. Quais são melhores ou piores, deixo para que vocês o considerem.

Recém-me dou conta que, como disse antes um par de vezes, por acaso ou providência, encontro-me escrevendo-lhes o capítulo final desta história justamente hoje, Quinta-feira 13, justo um dia após também se ter celebrado o Dia do Programador na Argentina. Assim, vá meu cumprimento para meus colegas da profissão.

E se alguma vez andarem pelo norte do país por Paraguai, ou pela Triple Frontera, e se, embora isso eu duvide, alguma vez lhes dai por recorrer e cair em algum buraco de mala morte, de perdidões por caminhos de terra ignotos, ou escondidos em algum sótão... se viram uma garota trabalhando, de olhos verdes brilhantes e uma boca larga, paguem-lhe algo para beber e perguntem-lhe se se chama ou se chamava Micaela. E se se surpreender e lhes disser que sim, tratem-na bem, lembrem-se de mim e lembrem-se desta história.

Dios dentro de tudo.